O Brasil está correndo o risco de “virar uma Venezuela” - pelo menos na Assembleia Geral da ONU e nos principais conselhos das Nações Unidas.
O país vai perder direito de voto em todas as instâncias do organismo multilateral, a partir de janeiro, caso não pague pelo menos US$ 113,5 milhões até o dia 31 de dezembro.
Isso seria inédito na diplomacia brasileira. O pagamento não quitaria toda a dívida acumulada pelo governo brasileiro, que chega a US$ 386 milhões e inclui contribuições orçamentárias para missões de paz, mas é a quantia mínima para evitar punição.
Dos 193 países-membros da ONU, somente um ficou proibido de votar durante o ano de 2020 praticamente inteiro: a Venezuela. O regime de Nicolás Maduro vinha alegando que não conseguia fazer pagamentos por causa das sanções financeiras adotadas pelos EUA, que dificultam transações bancárias. Há três semanas, Caracas finalmente regularizou sua situação, mas esteve banida das votações do dia 1º de janeiro a 28 de outubro.
Quando a dívida acumulada supera o valor total das contribuições devidas nos dois anos anteriores, perde-se o direito de votar. Trata-se da única punição prevista no regulamento das Nações Unidas. Não há aplicação de multa ou veto à presença em reuniões. Três países estouraram esse limite: São Tomé e Príncipe, Somália e Ilhas Comores.
Todos, no entanto, entraram com pedido de “waiver” (perdão) na própria ONU. Eles argumentaram restrições econômicas severas, tiveram seus pleitos aprovados pelos demais países e acabaram preservando seus direitos na íntegra.
A perda do voto atingiria todos os conselhos das Nações Unidas dos quais o Brasil faz parte, como o Econômico e Social (que lida com temas como desenvolvimento sustentável e energia) e o de Direitos Humanos (que funciona em Genebra e tem alta visibilidade).
Um dos maiores pontos de preocupação no Itamaraty, comandado pelo ministro Ernesto Araújo, é com a candidatura brasileira para um assento não permanente no Conselho de Segurança. Em 2021, o Brasil empreenderá uma campanha diplomática para voltar ao colegiado no biênio 2022-2023.
Por um descuido do governo Dilma Rousseff, que demonstrava pouco interesse pelo tema, o Brasil ficou sem pleitear vaga no Conselho de Segurança e todas as cadeiras latino-americanas foram preenchidas até 2033. Isso levaria o país a manter-se afastado por mais de duas décadas - a última vez foi no biênio 2010-2011.
Graças a um acordo fechado na gestão Michel Temer, o Brasil conseguiu antecipar seu retorno em mais de dez anos. O Itamaraty costurou com Honduras a “cessão” da vaga à qual o país da América Central tinha direito. Mesmo assim, pelo menos dois terços dos países-membros da ONU terão que aprovar o pleito brasileiro.
Com a imagem arranhada no exterior e cada vez mais pressionado na área ambiental, o Brasil se preparava para propor uma troca de votos com vários governos, não apenas na Assembleia Geral, mas em deliberações específicas dos outros colegiados.
Países não democráticos do Oriente Médio, da África e do leste da Ásia são alvos frequentes do Conselho de Direitos Humanos em Genebra - onde o Brasil costuma ter voz ativa. Sem capacidade de entregar um voto sequer, perde-se elemento de barganha.
O panorama ganhou contornos dramáticos para o Itamaraty depois de uma articulação política feita pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, com o Congresso. Um acordo entre Marinho e o senador Marcelo Castro (MDB-PI) realocou para obras da pasta mais de R$ 1,2 bilhão que estava destinado a contribuições para órgãos internacionais.
Além da ONU, o crédito suplementar previa aportes na Organização Mundial do Comércio (OMC) e na Secretaria do Mercosul, entre outros organismos.
Esse tipo de crédito precisa ser aprovado pelo Congresso em projeto de lei e não pode ser objeto de uma medida provisória do governo. Isso torna a mudança feita por Castro, relator do projeto atual, mais sensível politicamente. Se o texto for chancelado dessa forma, teme-se que não haja tempo hábil para a análise de nova proposta antes do recesso parlamentar.