Ao longo de sua história milenar, a Igreja Católica aprimorou a infindável capacidade de superar crises internas, arrebanhar fiéis e moldar o comportamento do Ocidente. No entanto, os dogmas sólidos que lhe permitiram superar cismas e a Reforma Protestante servem agora de amarra, impedindo o ajuste da bússola moral da instituição ao mundo moderno, conectado e diverso do século XXI. Aparentemente mais aberto a mudanças do que seus antecessores, o papa Francisco vem tentando contornar a resistência dos conservadores em questões espinhosas. Mas seus esforços não chegam nem perto de encontrar solução para uma contradição incômoda e cada vez mais ruidosa: a Igreja que condena publicamente a ordenação de homossexuais tem muitos deles entre seus quadros, em um segredo de sacristia que mal consegue ser dissimulado.
Durante dois meses, VEJA ouviu padres, estudiosos e ex-seminaristas dispostos a romper o silêncio sobre um tema que é tabu — reflexo do barulho que anda fazendo uma corrente ainda incipiente do clero empenhada em tirar o assunto das sombras. Alguns assumem sua sexualidade. A maioria, porém, preferiu o anonimato, por medo de represálias. Todos foram unânimes em afirmar que mais da metade do clero, no Brasil e fora dele, é homossexual e vive angustiada pelo que vê como um pecado não confesso, frequentemente traduzido em depressão e até pensamentos suicidas. “Passei mais de dez anos acreditando que minha homossexualidade era uma manifestação do demônio”, diz Flávio (o nome foi alterado a pedido), 43 anos, padre de uma paróquia conservadora no estado de São Paulo. “Ficava horas fazendo orações de exorcismo, buscando curas, batendo no pênis para me punir. Só me aceitei como sou depois de muita terapia.” O religioso continua a manter em sigilo sua vida pessoal e teme ser descoberto. “É um drama constante. Ao mesmo tempo que aprendi a amar quem sou, tenho medo de ser rejeitado pela Igreja e pela comunidade”, desabafa.
A apreensão é compreensível — os poucos padres que se declararam gays no passado foram perseguidos e afastados pelo Vaticano. O primeiro sacerdote de alto escalão a tomar essa atitude foi o polonês Krzysztof Charamsa, que atuava na poderosa Congregação para a Doutrina da Fé quando decidiu se revelar homossexual, em uma entrevista em 2015. “Fui proibido de exercer o ministério e de lecionar teologia, mas nunca houve um julgamento, nem tive a oportunidade de me defender”, disse Charamsa a VEJA. O irlandês Bernárd Lynch decidiu se assumir gay perante seus superiores na década de 80, quando integrou um movimento de combate à aids em Nova York, e igualmente acabou sumariamente afastado de suas funções. “Fui removido da minha paróquia e deixei de receber auxílio financeiro. Mas continuo atuando como padre”, conta Lynch, que, aos 74 anos, mora com o parceiro em Londres e comanda grupos de apoio a católicos da comunidade LGBT.
Em mais de uma ocasião, o papa Francisco se referiu aos gays de maneira tolerante. “Quem sou eu para julgar?”, chegou a indagar em um voo do Rio de Janeiro para Roma ao final da Jornada Internacional da Juventude, em 2013. Mais recentemente, em gravação para um documentário, defendeu a criação de leis para facilitar a união civil (não o casamento) de casais do mesmo sexo, o que causou enorme polêmica e obrigou o Vaticano a afirmar que não foi bem o que ele quis dizer. Em outro momento, em 2017, ligou pessoalmente para se solidarizar com o britânico James Alison, um padre gay. Alison morou dez anos no Brasil e foi processado pela Arquidiocese de São Paulo por tentar criar a primeira pastoral LGBT. Quando o caso chegou a Roma, ele relata ter recebido um telefonema de apoio de Francisco. “As palavras exatas dele foram: ‘Quero que caminhes com plena liberdade interior, no espírito de Jesus’”, diz Alison.
Bem ao seu estilo de provocar e recuar, contudo, Francisco assinou a suspensão do polonês Charamsa e, anos depois, afirmou, em conversas com o missionário espanhol Fernando Prado, que a homossexualidade “não tem espaço” dentro da Igreja Católica. Nas hostes tradicionalistas, os comentários do pontífice simpáticos aos gays têm sido alvo de críticas intensas. O bispo americano Raymond Leo Burke, expoente dessa corrente, chegou a aventar a necessidade de Francisco ser “formalmente corrigido” nas suas declarações sobre o tema. Uma estratégia da ala conservadora é tentar atrelar os casos de abuso de menores, expostos com frequência nos últimos anos, à presença de homossexuais no sacerdócio. “Muitos padres gays temem ser associados a crimes que não cometeram”, afirma um sacerdote orientado pelos superiores a manter a identidade oculta.
Nos primeiros tempos do catolicismo, a homossexualidade era tolerada nos mosteiros e paróquias. A virada aconteceu no século XIII, quando São Tomás de Aquino, em sua obra mais famosa, a Suma Teológica, classificou as relações entre pessoas do mesmo sexo como um pecado mais grave do que o adultério. Desde então, a doutrina só foi ficando mais rígida, até abranger especificamente os sacerdotes — que teoricamente não exercitam sua sexualidade e em quem, pela lógica, a orientação hétero ou homossexual não faria diferença. Crítico severo das relações entre o mesmo sexo, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, ao se tornar papa Bento XVI, publicou em 2005 uma instrução que proíbe a ordenação de padres com “tendências homossexuais profundamente radicadas”, em vigor até hoje. “Um candidato nessa situação será monitorado de perto e terá de mostrar que superou as tais tendências durante pelo menos três anos antes da ordenação diaconal, que é o passo anterior ao sacerdócio”, explica Guilherme Dudus, advogado conhecedor do direito canônico.
Uma vez ordenado, o sacerdote nunca mais deixará de sê-lo, a não ser que passe pelo corte radical da excomunhão. A decisão dos superiores de afastar os padres que se assumem gays resulta, no entanto, em sua suspensão da ordem e extinção das funções dentro da Igreja — na prática, uma espécie de limbo que assombra os gays. Pedro (nome alterado a pedido), 46 anos, teve no seminário seu primeiro contato sexual com outro homem. Contou ao reitor, submeteu-se ao período de monitoramento e foi ordenado, mas seu dilema não arrefeceu. “Na minha cabeça, eu vivia em pecado. Durante oito anos, tive episódios de depressão profunda”, lembra. No meio do processo, ele decidiu pendurar a batina e dar aula de filosofia. Chegou a ter um namorado, mas a vocação falou mais alto. “Pedi para voltar porque concluí que o fato de ser gay não impede a minha atuação como padre”, diz.
Para jovens católicos de famílias conservadoras que se percebem gays, o sacerdócio muitas vezes é abraçado como uma forma de se livrar das perguntas incômodas e ironias de amigos e parentes sob a chancela do celibato. “Quase todos os meus companheiros de seminário eram gays. A gente, inclusive, se dava apelidos femininos”, relata um ex-seminarista. “Lembro que um padre, que viria a ficar conhecido por se envolver em um escândalo de corrupção em uma paróquia de São Paulo, era chamado de Betty, a Feia.” Em casos raros, os superiores os autorizam a seguir pregando, desde que escondam sua orientação sexual. O vigário Gustavo (nome alterado a pedido), 40 anos, organiza debates sobre o tema há oito anos com grupos de jovens, em uma paróquia no interior do Maranhão, com permissão de seu bispo. “Já fui acusado na cidade de promover uma ditadura gay”, diz, rindo. Sobre seu futuro, não tem ilusões: “Nunca vou conseguir ascender na hierarquia da Igreja”, desabafa. “A Igreja Católica construiu uma grande mentira: os padres têm de ser santos, sem sexo, sem desejo. A homossexualidade, quando é aceita internamente, precisa ser escondida”, diz a VEJA o francês Frédéric Martel, autor de No Armário do Vaticano, livro que revelou a vida dupla dos cardeais de Roma. Questionada pela reportagem sobre sua posição oficial a respeito da questão, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não quis se manifestar. O tabu resiste ao tempo, mas precisa ser posto à luz.
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