A gigante de telecomunicações chinesa Huawei está prestes a dar sua maior cartada até agora para se libertar do elo americano em sua cadeia de suprimentos. Nesta semana a empresa planeja lançar o Harmony, sistema operacional para telefones, computadores e outros dispositivos inteligentes que desenvolveu para substituir o Android, do Google. É um dos muitos movimentos que as empresas chinesas estão fazendo para ajudar a China em seu objetivo de obter "autossuficiência tecnológica", me disse de Hong Kong Tommy Wu, economista sênior para Ásia da consultoria Oxford Economics.
Para além dos detalhes técnicos que serão apresentados na quarta-feira na sede da Huawei, em Shenzhen, é clara a dimensão geopolítica do lançamento, que vai muito além da pura inovação tecnológica. É mais um desdobramento da rivalidade entre Washington e Pequim, da qual a Huawei tornou-se um dos pontos nevrálgicos com o boicote americano à empresa chinesa implementado pelo governo de Donald Trump.
Sob a alegação de que o uso de tecnologia da Huawei poderia permitir o roubo de dados e espionagem pelo governo chinês, o governo Trump fez uma campanha mundial para que outros países barrassem a empresa de participar de suas redes de telefonia móvel de quinta geração. Suécia, Austrália, Reino Unido, Japão, Canadá e França já anunciaram que restringirão o uso de equipamentos chineses em suas redes 5G. Aliado de Trump, o presidente Jair Bolsonaro insinuou durante meses que seguiria o mesmo caminho, mas acabou liberando a participação da Huawei no leilão do 5G, com a ressalva de que as operadoras vencedoras deverão construir uma rede privativa para uso militar e do governo.
O projeto do novo sistema operacional da Huawei foi revelado em agosto de 2019, três meses depois das restrições impostas pelos EUA que impediram o suprimento de produtos e serviços da Google para a empresa. A decisão levou a Huawei a investir milhões no projeto para blindar-se das tensões políticas com os EUA — hoje 99% do mercado global de smartphones é dominado por sistemas operacionais de duas empresas americanas, o Android e o iOS da Apple, de acordo com a consultoria de mercado alemã Statista.
O anúncio de que a Huawei lançará seu próprio sistema operacional foi saudado como um marco nas redes sociais e na mídia estatal chinesa. No futuro, "o dia 2 de junho será lembrado como uma data histórica para a China", escreveu um usuário do Weibo, o Twitter chinês, para aplauso de milhares de seguidores. Para o Diário do Povo, principal jornal do Partido Comunista, o Harmony é "sem dúvida o maior empurrão da Huawei para construir seu próprio ecossistema de software" e dar a volta por cima depois da restrições que abalaram sua produção de hardware.
Acirrada durante o governo Trump, a rivalidade entre China e EUA se estendeu a quase todas as áreas temáticas e regiões do mundo, mas parece haver um consenso nos dois lados de que a corrida tecnológica será determinante para definir qual dos dois países terá a supremacia no século XXI. Considerado mais moderado que Trump, na prática o presidente Joe Biden manteve a linha-dura, enfatizando que Pequim é o maior desafio dos EUA e mantendo o veto à exportação de tecnologia para a Huawei e outras empresas chinesas. Além do estilo menos explosivo de Trump, uma diferença na política de Biden é focar não apenas em medidas defensivas, mas também em investimentos na indústria americana.
A preocupação dos EUA em ficar para trás se justifica não só pelo salto dado pela China nos últimos anos na produção de tecnologias que serão cada vez mais relevantes, como o 5G e inteligência artificial, mas também pela escala que o país é capaz de produzir em matéria de mão de obra especializada. Em 2017, as universidades chinesas formaram 4,7 milhões de estudantes em ciência e tecnologia, contra 568 mil nos EUA, segundo um estudo do Fórum Econômico Mundial. A distância em relação ao Ocidente deve continuar aumentando. Até 2030, as estimativas mais modestas são de que o número total de graduados em universidades na China crescerá 300% — grande parte em áreas ligadas a tecnologia — enquanto nos EUA e nos países da União Europeia o aumento será de 30%.
Enquanto Biden tenta revitalizar a indústria americana, o governo chinês concentra seus esforços em fortalecer a inovação tecnológica nacional. Na última sessão do Legislativo chinês, em março, a busca por autossuficiência foi reiterada como o centro da política econômica do país para as próximas décadas. A estratégia tem a ver não apenas com a preocupação em se proteger de pressões externas, mas com os desafios que a economia chinesa enfrenta em sua transição do modelo baseado em investimento e exportação para um que priorize a eficiência, como explica Bates Gill, especialista do centro de estudos Asia Society da Austrália.
— O futuro econômico da China precisa depender menos de investimentos, que no passado estiveram menos preocupados com o uso eficiente de capital, e muito mais em extrair eficiência e produtividade dos estoques de capital existentes. Para isso é preciso obter mais produtividade de cada trabalhador e unidade de capital por meio de medidas como inovação tecnológica, alocação de capital para maiores resultados e a transição para um modelo mais voltado para o consumo — disse Gill.
No ano passado, sem poder contar com componentes americanos, a Huawei despencou do primeiro para o sexto lugar entre os maiores produtores mundiais de smartphones. Diante das restrições impostas por Washington, não resta alternativa à Huawei senão acelerar suas pesquisas e o desenvolvimento de seus produtos do começo ao fim, disse ao Diário ao Povo o especialista em tecnologia Charlie Dai, da consultoria Forrester. Num comunicado interno recente obtido pela agência Reuters, o fundador da Huawei, Ren Zhengfei confirma que o foco passa a ser a produção de software e diz que os funcionários da empresa devem "ousar liderar o mundo".
Será uma "jornada difícil", mas que a empresa terá que encarar se quiser "sobreviver e prosperar", acrescentou Dai. Em poucas palavras, é também essa a estratégia delineada pelo governo chinês para manter o crescimento econômico , tornar-se independente dos EUA e ganhar terreno na corrida entre as duas potências pela supremacia tecnológica global.